Professora numa aldeia perdida nas
serranias do norte do país, vi crianças que de outras aldeias distantes vinham
à escola, almoçar uma cebola crua com umas pedras de sal e um enorme pedaço de
broa. Aquela saborosa broa do norte era grande, enorme e levava uma noite a
cozer no forno quente cuja porta era calafetada, para que nenhum calor se
perdesse, com bosta de vaca que nesses tempos abundava nos caminhos percorridos
amiúde por carros que chiavam uma música que eu gostava de ouvir. Naquele
tempo, nada se perdia e os caminhos estavam sempre limpos, apesar das
necessidades fisiológicas das vacas da aldeia serem muitas. Bom alimento que as
vessadas agradeciam. A broa, posso garantir que era óptima, porque me habituei
a comê-la simples ou com umas rodelas de chouriço que naquela aldeia, lá para
trás da serra era também uma delícia.
Aquelas crianças eram alegres,
brincavam à bilharda, jogavam ao pião e corriam com entusiasmo atrás da bola de
trapos que, quase todas as semanas era renovada. Eu ficava-me a olhá-las e a
perguntar-me como era possível aquelas crianças serem felizes. E sofria por
elas que calcorreavam caminhos para chegar à escola, sujeitos aos caprichos do
tempo. Era a neve, a geada, a chuva, o calor escaldante. Agasalhos? Que
agasalho é um casaco roto dum irmão mais velho que já ganha algum nas minas da
Borralha? Que impermeável é uma saca dobrada em forma de capuz sobre a cabeça?
Que agasalho é um saiote de flanela gasto pelos anos ao serviço da mãe, a
servir de capa?
Chegavam gelados, e que
aquecimento tinha a professora preparado para os aconchegar naquela escola
velha de soalho esburacado? Uma braseira que vizinha amiga enchia de brasas.
Iam, à vez, aquecer as mãos “engatinhadas”do frio para poderem pegar na caneta!
Eu também tinha frio. Mas as crianças,
Senhor!
E no meu coração e no coração de
todos os professores que, como eu, estavam espalhados pelas aldeias isoladas,
crescia a enorme vontade de mudar. Era um sufoco que quase nos cortava a
respiração.
Passaram anos e um dia acordámos
ao som de “Grândola vila morena”. Uma enorme alegria se apoderou de nós. Era o
que todos esperavam ansiosamente. Passados os arroubos dos primeiros tempos de
liberdade, parecia estarmos enfim no caminho de uma agradável e sólida mudança.
Visitei, mais tarde aquela aldeia distante. Que diferença! Uma estrada
alcatroada substituía os velhos caminhos e atalhos que faziam parte das minhas
recordações. Muitas casas novas e… maravilha! uma escola enorme, branquinha,
janelas rasgadas e uma salamandra que no Inverno fumegava. Como são felizes os
meninos de agora! - pensei entusiasmada. E felicitava-me por me ter sido dado
viver a mudança. Era uma sortuda!
O tempo passa e começam a surgir
os primeiros sinais de alarme. São muitos os disparates que se vão
vislumbrando. Esbanjamentos, vigarices, desperdícios, corrupção, más opções
governativas, políticos incompetentes e… o povo todo contente. Se algo estava a
correr mal, não era nada com ele. Os bancos ali estavam com o dinheirinho a
saltar!
E agora? Quem imaginou que chegássemos a
ter na escola crianças com fome! Como chegámos a isto? Que começo de século
vinte e um é este? Temos que pedir contas a quem? A quem foi endividando este país
até ás orelhas? A quem pôs o dinheirinho que com astúcia arranjou ao virar da
esquina, em paraísos fiscais? A quem aufere reformas e vencimentos que
envergonham qualquer pessoa de bem? A esta eminência parda que dá pelo nome de
troica, esse triunvirato indesejável que castiga quem foi alambazado a gastar e
leva todos consigo, mesmo os que não têm, ou pensam que não têm, culpa? Aos que
nos governam e com cara de poucos amigos nos dão, secos e pecos, as notícias
mais calamitosas? Aos outros que já foram desastroso governo e agora falam como
se não fosse nada com eles? Será que o caminho que se está a seguir é a melhor
e única maneira de sair do atoleiro onde todos estamos metidos?
Todos! Mas as crianças, Senhor!
©Eurides Machado
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