Fundador: Padre Domingos de Sousa - Director: Padre Jorge Carvalhal - Propriedade: Fábrica da Igreja de Canas de Senhorim

sexta-feira, 8 de março de 2013

Mas as crianças, Senhor!

 Professora numa aldeia perdida nas serranias do norte do país, vi crianças que de outras aldeias distantes vinham à escola, almoçar uma cebola crua com umas pedras de sal e um enorme pedaço de broa. Aquela saborosa broa do norte era grande, enorme e levava uma noite a cozer no forno quente cuja porta era calafetada, para que nenhum calor se perdesse, com bosta de vaca que nesses tempos abundava nos caminhos percorridos amiúde por carros que chiavam uma música que eu gostava de ouvir. Naquele tempo, nada se perdia e os caminhos estavam sempre limpos, apesar das necessidades fisiológicas das vacas da aldeia serem muitas. Bom alimento que as vessadas agradeciam. A broa, posso garantir que era óptima, porque me habituei a comê-la simples ou com umas rodelas de chouriço que naquela aldeia, lá para trás da serra era também uma delícia.
 Aquelas crianças eram alegres, brincavam à bilharda, jogavam ao pião e corriam com entusiasmo atrás da bola de trapos que, quase todas as semanas era renovada. Eu ficava-me a olhá-las e a perguntar-me como era possível aquelas crianças serem felizes. E sofria por elas que calcorreavam caminhos para chegar à escola, sujeitos aos caprichos do tempo. Era a neve, a geada, a chuva, o calor escaldante. Agasalhos? Que agasalho é um casaco roto dum irmão mais velho que já ganha algum nas minas da Borralha? Que impermeável é uma saca dobrada em forma de capuz sobre a cabeça? Que agasalho é um saiote de flanela gasto pelos anos ao serviço da mãe, a servir de capa?
 Chegavam gelados, e que aquecimento tinha a professora preparado para os aconchegar naquela escola velha de soalho esburacado? Uma braseira que vizinha amiga enchia de brasas. Iam, à vez, aquecer as mãos “engatinhadas”do frio para poderem pegar na caneta!
Eu também tinha frio. Mas as crianças, Senhor!
 E no meu coração e no coração de todos os professores que, como eu, estavam espalhados pelas aldeias isoladas, crescia a enorme vontade de mudar. Era um sufoco que quase nos cortava a respiração.
 Passaram anos e um dia acordámos ao som de “Grândola vila morena”. Uma enorme alegria se apoderou de nós. Era o que todos esperavam ansiosamente. Passados os arroubos dos primeiros tempos de liberdade, parecia estarmos enfim no caminho de uma agradável e sólida mudança. Visitei, mais tarde aquela  aldeia distante. Que diferença! Uma estrada alcatroada substituía os velhos caminhos e atalhos que faziam parte das minhas recordações. Muitas casas novas e… maravilha! uma escola enorme, branquinha, janelas rasgadas e uma salamandra que no Inverno fumegava. Como são felizes os meninos de agora! - pensei entusiasmada. E felicitava-me por me ter sido dado viver a mudança. Era uma sortuda!
 O tempo passa e começam a surgir os primeiros sinais de alarme. São muitos os disparates que se vão vislumbrando. Esbanjamentos, vigarices, desperdícios, corrupção, más opções governativas, políticos incompetentes e… o povo todo contente. Se algo estava a correr mal, não era nada com ele. Os bancos ali estavam com o dinheirinho a saltar!
 Isto não estava a augurar coisa boa. Apesar de tudo eu nunca imaginei que dentro em pouco crianças de aldeias ou de cidades não tivessem pão para comer. E sofressem castigos que as outras não sofreram, que não estavam habituadas a mordomias, tinham pão bom e com abundância, batatas e feijão colhidos no campo ao lado, galinhas e ovos na capoeira e o porco a engordar no cortelho. As casas eram mais que deficientes, mas todas, sem excepção, tinham uma boa fogueira no Inverno junto da qual fervia o caldo de feijão e hortaliça. Quantas vezes, no caminho da escola, não assomou à porta de uma casa escura e fumarenta uma cara enfarruscada: “Senhora professora, não quer aquecer-se, comer uma malguinha de caldo e beber uma pinguinha, connosco?” Nunca aceitei tão genuína e apetitosa oferta, mas muita vez espreitei e vi crianças ranhosas e sujas a comer desembaraçadas, logo pela manhã, o caldo fumegante. A seguir uma lavadela à cara e toca a andar para a escola que a senhora já lá vai. Outras coisas, as crianças não pediam, que nem as conheciam. Por isso imaginavam que eram felizes.
E agora? Quem imaginou que chegássemos a ter na escola crianças com fome! Como chegámos a isto? Que começo de século vinte e um é este? Temos que pedir contas a quem? A quem foi endividando este país até ás orelhas? A quem pôs o dinheirinho que com astúcia arranjou ao virar da esquina, em paraísos fiscais? A quem aufere reformas e vencimentos que envergonham qualquer pessoa de bem? A esta eminência parda que dá pelo nome de troica, esse triunvirato indesejável que castiga quem foi alambazado a gastar e leva todos consigo, mesmo os que não têm, ou pensam que não têm, culpa? Aos que nos governam e com cara de poucos amigos nos dão, secos e pecos, as notícias mais calamitosas? Aos outros que já foram desastroso governo e agora falam como se não fosse nada com eles? Será que o caminho que se está a seguir é a melhor e única maneira de sair do atoleiro onde todos estamos metidos?
 Todos! Mas as crianças, Senhor!

©Eurides Machado

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